Intolerância Religiosa - Cultura e Contemporaneidade
Intolerância religiosa - Desdobramentos pelo Brasil e mundo afora
As discussões em torno da temática do preconceito e da necessidade de assumirmos responsabilidade com as atitudes que direcionamos ao próximo, independente de sua identidade, tem se intensificado cada vez mais. Uma vez que inúmeras empresas tem aderido a causas sociais (e/ou) progressistas, como etarismo, homofobia, racismo, xenofobia... .
Logo, abordar o respeito ao próximo e às diversidades, aparenta ser uma lição mais que aprendida, dada a relevância atribuída e a propagação alcançada. Contudo, mesmo com a difusão em massa deste tipo de ideia e com a adesão internacional por parte das maiores corporações - as quais veiculam diariamente propagandas orientadas ao combate do preconceito, ainda assim presenciamos ações completamente desconexas com as normas mais básicas de convívio.
Este é o caso das manifestações públicas de intolerância religiosa que tem se intensificado. E que presenciamos de longa data. Entretanto, atingiram seu mais recente clímax durante os últimos eventos eleitorais, na campanha pela presidência. Onde o forte conservadorismo brasileiro, somado à ignorância resultante de uma educação deficitária, foram utilizados como elemento de engajamento político, e assim, provocaram múltiplos fenômenos de hostilidade gratuita. Configurando um cenário prévio e ideal para ensejar uma anomia. Ou seja, algo seriamente crítico.
A questão da intolerância religiosa no Brasil
Temos visto e presenciado, inúmeros eventos abruptos de intolerância religiosa. Onde a grande maioria das vítimas, no contexto brasileiro, são os praticantes do espiritismo de matriz africana.
Templos de Umbanda e Candomblé são invadidos e suas esculturas, de santos, são destruídas. Assim como todo o interior de seus templos.
A mídia divulga inúmeros casos de intolerância religiosa que são ignorados. E um destes casos é de uma menina que foi iniciada no espiritismo e que foi agredida com uma pedrada em sua cabeça. Todavia, o mais grave é a assimilação da fé cristã, de denominação evangélica, pelo próprio tráfico de drogas. Como foi o caso do "Complexo de Israel". Onde o traficante se identifica como: evangélico. De acordo com relatos, os praticantes da fé de matriz africana, são dissuadidos a abandonarem a religião. E seus templos de culto são vandalizados. E se persistirem, poderão sofrer hostilidades.
Desta maneira, podemos presumir, ou intuir que este comportamento agressivo tem uma origem. E esta origem está associada a uma narrativa anterior. O que nos leva à pensar: quais podem ser as causas? Que tipo de elementos podem ter contribuído para o preconceito religioso em nosso país?
Origens do preconceito e da intolerância religiosa no Brasil:
As origens deste preconceito envolvem algumas questões. Já que até os anos 80, mais de 80% da população brasileira era adepta do catolicismo. Logo, o conservadorismo brasileiro está atrelado à visão maniqueísta da igreja católica apostólica romana.
O mesmo já ocorria há séculos atrás por meio das missões jesuítas sobre os povos originários. Onde igualmente com os espíritas, havia uma multiplicidade de entidades, no panteão de sua crença, que lhes foram negados. Logo, nota-se que a visão conservadora cristã, muito provavelmente, perdura também como uma consequência das missões dos padres jesuítas. Os quais puniam com castigos físicos, os índios que não se submetiam aos ditos "ensinamentos".
Outras proibições também ocorriam, como a ingestão de Cauim - típica bebida indígena fermentada. Ou como a demonização de entidades locais que não eram passíveis de serem comparadas, ou compreendidas, pela perspectiva maniqueísta do catolicismo europeu.
Assim como os indígenas brasileiros foram vítimas da imposição dos jesuítas (e da Coroa Portuguesa), em solo Brasileiro, outros povos, em cenários diferentes também se tornaram perseguidos por sua fé, em períodos próximos. Inclusive, ainda em solo nacional, os próprios africanos foram privados de praticarem sua fé. O que gerou, consequentemente, o fenômeno do sincretismo religioso.
Onde a imagem e os nomes dos santos católicos foram absorvidos e comparados às divindades africanas, ou: os orixás. Para que o culto de seus ancestrais e sua fé, pudesse ser mantido em meio a forte repressão. Levando em consideração que o período histórico contemporâneo aos escravos, envolvia desde a presença da santa inquisição até o pensamento paternalista rigoroso que predominava sobre todos os habitantes do Brasil, como parte da ideologia vigente de até então.
"O pagador de promessas" de Dias Gomes:
Um livro simples, que aborda a intolerância religiosa e o sincretismo africano, tão comum no estado brasileiro da Bahia. Onde um homem tenta entrar em uma igreja católica para cumprir sua promessa, de carregar uma cruz pesada de madeira até a igreja de Santa Bárbara, em Salvador. Após ter seu animal, um burro, curado.
Um compromisso selado em um terreiro de Candomblé, para uma mãe de santo. E que sofre resistência por parte das ideranças locais da igreja, após ouvirem o relato e rejeitarem a promessa em razão de seu contexto pagão.
Intolerância religiosa ao longo da história humana: Alemães, Armênios, Iugoslávia e China
Ao observarmos a história humana, em períodos bem próximos, notamos diferentes períodos de tragédia que envolveram a intolerância religiosa. E em alguns deles, a fé de uma minoria foi usada como ferramenta de ataque pela maioria.
A Alemanha nazista, atacou a fé judaica. E gerou campos de concentração, onde morreram mais de seis milhões de judeus. Sem contar outros grupos, como: ciganos e testemunhas de jeová.
Os armênios, uma das primeiras nações a ter aderido ao cristianismo, sofreram pelas mãos do Império Turco-Otomano (atual Turquia), de fé muçulmana. A qual ainda predomina em sua região. Provocando outro genocídio, bem menos conhecido, de mais de um milhão de mortos.
A mesma intolerância religiosa também pôde ser vista no episódio histórico da dissolução da Iugoslávia, embora também tenha envolvido outras modalidades de intolerância, como a xenofobia e o nacionalismo exacerbado. Que apesar de diferir, em um certo sentido semântico, também acarreta nas mesmas consequências, como por exemplo: violência e morte.
Com o fim desta república socialista soviética, algumas das nações internas, como albaneses, sérvios e bósnios, entraram em conflito. E por fim, trouxe mais um episódio genocida: "sarajevo".
E embora a palavra genocídio aparente ser um fenômeno retrógado e ultrapassado, continua a ser empregado. Como é o caso da etnia dos povos Uygures. Adeptos da sharia (lei islâmica) e da religião muçulmana. De acordo com fontes jornalísticas, a China tem aplicado campos de concentração, ou: "reeducação", como medida disciplinar. Em razão de sua fé e de sua luta pela emancipação de sua região. A qual está próxima de outros estados, tal como Uzbequistão e Cazaquistão. Logo, os interesses político-econômicos da China não representam sua única motivação, pela repressão aplicada, mas também sua visão intolerante que se opõe à prática da fé. Forçando as igrejas a divulgarem faixas políticas do partido comunista Chinês e até mesmo, a pregarem mensagens favoráveis ao regime, antes das pregações. O que chamam de: "sinicização".
Análise sobre a intolerância religiosa pela sociologia de Durkheim:
Durkheim vai abordar a sociedade capitalista-industrial contemporânea, como "sociedade orgânica". Que divergindo dos costumes das culturas tribais (próximas do modelo familiar), é formada por sujeitos interdependentes. Assim, surge a necessidade de uma maior coesão, ou solidariedade. E quando estas relações se desgastam, surgem conflitos, ou ruídos, que ameaçam a harmonia pacífica entre seus membros. Levando a um estado de caos, nomeado por: anomia. Logo, a intolerância política se coloca como um comportamento que afeta diretamente a qualidade de vida dos outros. Podendo resultar até mesmo, em uma guerra civil. E os exemplos internacionais são inúmeros. Dois destes são: o conflito histórico entre xiitas e sunitas, e o confronto na Irlanda, entre católicos e protestantes. Os quais serviram de tema para a composição de canções da banda irlandesa U2 ("Pride" e "Sunday bloody sunday")
Cristianismo - uma crença intolerante? (A prerrogativa do senso crítico bíblico)
Comumente a fé cristã (ou judaico-cristã), é associada à perspectiva fundamentalista. Suas características críticas, dados os tempos contemporâneos são apontadas, como: o caráter patriarcal, a submissão feminina, a falta de legitimidade sobre o comportamento homossexual, assim como para o casamento entre ambos, e tantas outras inúmeras questões sensíveis. E para piorar, ainda nos deparamos com instituições religiosas que incutem em seus fiéis um pensamento excessivamente afetivo. Baseado na necessidade de uma obediência cega e impositiva. Que quase sempre, não se permite dialogar com as adversidades naturais e divergentes da vida comum.
Entretanto, seria interessante questionar-se: esta doutrina radical, parte de uma leitura denotativa do próprio livro (mesmo sabendo que é um livro religioso, logo mais próximo da linguagem poética), ou de uma interpretação eivada pela visão do próprio pregador?!
Um dos motivos que levaram a culminação da reforma protestante, por parte de Martinho Lutero, na Alemanha, foi a busca pela livre interpretação. Um entre tantos outros temas em que ele discordava. Curiosamente, outro motivo que lhe fez confrontar a santa igreja católica, e que se enquadra no tema da intolerância religiosa, foi a busca pelo senso crítico de seus fiéis. Os quais eram submissos à vontade, à visão e à narrativa dos padres. Uma vez que a grande maioria era analfabeta e desprovida de qualquer instrução. Mas, muito antes da existência de Lutero, e de sua luta pela fé autônomo-reflexiva, a bíblia já apresentava prerrogativas para um pensamento crítico. Ainda mais no novo testamento.
Em 1 João 3:15, o apóstolo João diz que: "aquele que odeia seu irmão, é assassino". E no mesmo capítulo também vai dizer que: "quem não ama a seu irmão, permanece na morte".
No evangelho de Mateus 5:28, Jesus diz que o desejo por uma mulher, já configura uma consumação. Mesmo que seja uma ação prévia e ausente de materialidade. Presente apenas no campo metafísico, do pensamento. "Eu, porém, vos digo, que qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, em seu coração, já cometeu adultério com ela"
Muitos interpretam estas passagens como um ato de negação da realidade tangível. E por erro, assumem uma postura de distanciamento de sua própria natureza. Pois, buscam uma elevação mística e incoerente com as exigências da vida. Ou seja, adotam como referencial de sua fé, o "medo".
Já outros, se julgam superiores por terem se convertido e aceito a oferta do chamado. E aos que a recusaram, ou que ainda recusam, lhes consideram hierarquicamente inferiores. Logo, adotam como referencial de sua crença, o "orgulho'". Outro equívoco.
Após os últimos argumentos, é importante entender o funcionamento social que o cristianismo, enquanto proposta, ou ideologia, tem a oferecer. Independente de sua natureza de credo. Já que as religiões, como um todo, se apresentam como uma busca pelo conhecimento humanístico. Uma possibilidade crítica de olharmos para dentro de nós e de entendermos que nossas falhas, são compartilhadas pelos outros. E que o erro se inicia em nosso interior, e não na existência concreta.
Outro ponto importante, ainda sobre o cristianismo, e que representa o aspecto pacifista de sua ideologia está em Efésios 5:21. Quando o apóstolo Paulo diz: "Sujeitem-se uns aos outros". Assim, a proposta de submissão apresentada pelo apóstolo é coerente com elementos da vida social. Uma vez que até mesmo Freud apresenta o superego (sistemas de coerção) como: "princípio de civilização". Logo, o convívio em sociedade representa a não possibilidade de suprimento de todos os nossos desejos e pulsões. Como se aplica ao contexto do respeito, da coesão, da solidariedade e da interação entre as diferenças.
Onde aprendemos que para ganharmos, temos de perder. E também ao âmbito da intolerância religiosa. A qual, demanda um maior controle sobre as manifestações públicas de nossas opiniões.
Para concluir definitivamente, é importante ressaltar que a intolerância religiosa cometida contra qualquer outra crença, como é o caso das matrizes africanas em nosso país, não ocorre estritamente pelo caráter fundamentalista, conservador ou preconceituoso de uma religião em si. Mas pela ênfase e pelo direcionamento que é dado através da intolerância de seus líderes. Contudo, a única forma de dilatar, de aprofundar e de ampliar o pensamento da grande massa populacional, se dá através da instrução prévia do sistema educacional escolar. Que deveria focar mais no aprimoramento dos aspectos humanos, ou dos valores sócio afetivos, e menos no alcance de metas de competitividade.
Por fim, Carl Jung, em uma de suas últimas entrevistas, no auge da maturação de seu trabalho e de sua personalidade, afirmou:
"O único perigo real que existe é o próprio homem. Nós somos a origem de todo o mal que está por vir"
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